Encontrei nesse final de semana dois amigos do ginasial. Lembramos de
algumas histórias daquela época. Rimos muito ao lembrarmos das armações que praticamos com professores e colegas de turma. E terminamos por fazer um comparativo do que vivemos, numa escola estadual no finalzinho do período militar, para a educação de hoje, num
país democrático.
Éramos muito pobres. Todos os três. Nossas famílias viviam sempre com
grandes dificuldades financeiras. Naqueles anos, para muitos adolescentes, na
nossa idade, completar o ensino primário já era muita coisa. Insistir em fazer
o ginasial, que hoje é chamado de Fundamental II, era uma tarefa pra
poucos. Isso se tratando dos que faziam parte da classe mais pobre.
Em quase todo início de ano a direção da escola me cobrava o
fardamento.
Quando entrava o mês de março, era um sufoco. Era o primeiro prazo para
todos os alunos se apresentarem uniformizados.
Meus pais não tinham condições de comprar os tecidos e pagar costureira
pra confeccionar o uniforme. Camisa de tergal branca com um bolso do lado
esquerdo do peito com o emblema do colégio, calça de brim azul escuro e
sapatos conga, preto ou azul.
Quando chegava março os portões da escola fechavam. Quem não tinha
uniforme, ficava do lado de fora esperando o diretor chegar. Não era só eu, havia outros. No turno da manhã estudavam cerca de 350 alunos e pouco mais de
trinta, estavam sem farda.
Entre os barrados, havia problemas (referente ao fardamento) de tudo um
pouco. Os que tinham a calça, mas, faltavam-lhes a camisa. Os que estavam vestindo a
camisa, mas, a calça não era do tecido padrão, escolhido pela Secretaria de
Educação de Pernambuco. Tinha aluno que embora estivesse com a camisa e a
calça, faltavam os sapatos. E era esse dilema, cada um com sua história.
Eu fazia parte dos que faltava tudo.
Entre os doze e dezessete anos, foi o período que mais evoluir em
matéria de corpo. De um ano pro outro minhas roupas e sapatos não cabiam
mais. Mas, o que isso interessava ao Governo do Estado!?
Enfim, o diretor da escola chegava dirigindo seu carro. Como eu era o
mais "reincidente", ele me dirigia um olhar que até hoje não sei se
era de reprovação ou de preocupação. Um olhar que falava claramente: "Emilton, você outra vez!"
Éramos levados até sua sala. Todos! Esperávamos enquanto ele falava, por telefone, com
o seu superior na Secretaria de Educação. Após alguns minutos, ele nos
informava que a “secretaria decidiu dar mais um prazo para que os alunos que ainda
não tivessem fardamento, providenciassem urgentemente”.
Geralmente era dado mais trinta dias. Todos sabíamos que aquela
“generosidade” da Secretaria de Educação não passaria do mês de Abril. Tudo nos levava a acreditar da existência de uma norma que exigia todos os alunos devidamente fardados até maio.
O
Estado não iria tolerar que, no início da manhã, quando os alunos se
enfileiravam para cantar o hino nacional, tivesse entre os mais de 350 alunos,
cinco ou seis sem farda. Isso era uma afronta ao governo. Onde estava o dever
cívico?
Eu sabia que não iria conseguir solucionar o problema até maio. Eu já havia
passado por aquilo no ano anterior e no outro também. Mesmo assim agradecia ao diretor e seguia
para a sala de aula. Nessa altura já havia perdido as duas primeiras aulas,
mas, o que importava era que “eu ainda estava estudando”.
Passados os quinze dias de prazo, dado "generosamente" pela Secretaria da
Educação do Estado de Pernambuco, dos pouco mais de trinta barrados, outrora, restavam uns nove ou onze.
E entre eles, eu.
Mais uma vez proibido de entrar, esperar o diretor do lado de fora da
escola e rezar a Deus que ele encontrasse uma saída para nosso problema. Mas, na
verdade, só depois de muito tempo percebi que o jogo era justamente esse:
chegar em meados de Abril, com um número mínimo de estudantes que precisaria do
apoio do Estado para que lhes fossem “entregue de graça” o material para
confeccionar o fardamento. Ainda que isso provocasse um grandessíssimo
constrangimento.
Muitos colegas chegavam a desistir. Essa era uma das grandes razões, NÃO a única, que impediam estudantes da classe pobre, na minha época do ginasial, de prosseguir nos estudos.
O diretor chegava em seu carro, entravamos com ele e agora era adotado
um novo procedimento. Preenchíamos uma planilha, com dados pessoas e
econômicos, e também as medidas de nossas roupas. Assim, a Secretaria de Educação do Estado de PE, atendendo a expressiva "generosidade do governador do estado", se
comprometia a enviar as peças de tecidos para ser entregue a cada um dos alunos "carentes".
Dias depois recebíamos os tecidos, levávamos pra casa para serem
confeccionados os fardamentos e aí sim, fnalmente, entrávamos pelo portão da
escola fardados.
Todo esse processo, embora doesse muito, em nenhum momento pensei em desistir.
Nunca me sentir menor, por isso. Constrangido, talvez! Aliás, não percebi, na época, nenhuma discriminação por parte dos amigos de
classe. Pelo contrário, muitos eram até solidários. A discriminação com os
estudantes, vinha de cima. Muito lá de cima.
Foi aí que um dos colegas de ginásio lembrou que quando ele largava da
escola, tinha que voltar pra casa o mais rápido possível. Porque a farda que
ele usava pela manhã, era a mesma que o irmão usava à tarde.
A cobrança que alguns professores faziam sobre os alunos que não
tivessem comprado o livro didático, foi outra lembrança dolorida.
Você imagina, todos os dias, na hora da chamada, ter que ouvir do
professor: "você ainda não comprou seu livro, Emilton?" Isso em alto e bom tom.
Mas, essa é uma outra história. Talvez um dia possamos contá-la, por
aqui.
Tem pessoas que têm medo de contar seu passado. Eu tenho orgulho do meu. Muitos que passassem pelo que passei se perderiam, se "venderiam" ou desistiriam. Mesmo com todas as dificuldades, nunca repetir um ano escolar. Concluir, "a duras penas", o Ensino Médio, depois o " Ensino Científico", o " Ensino Técnico" e o Superior.
As dificuldades vêm. Sempre encontraremos pedras no caminho. Elas servem para alicerçar ainda mais nosso caráter! Nos tornar mais fortes!
Mas, esse também é um outro assunto que trataremos em outro momento.
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